Por Eduardo Valerio*
I. A reforma moral do homem é o objetivo maior da vida. A partir deste postulado, o Espiritismo edifica suas bases teóricas a fim de instar o homem a bem aproveitar sua encarnação no sentido de seu progresso espiritual e sua iluminação.
Neste contexto, a prática da caridade é condição indispensável para aquela finalidade, lançando Allan Kardec o epíteto “fora da caridade não há salvação”, como forma de destacar sua maiúscula importância. E, de fato, o conceito espírita de caridade não implica na simples beneficência, mas envolve o conjunto das virtudes que se traduzem na prática do bem.
Neste sentido, a resposta à questão nº 886 d’ O Livro dos Espíritos constitui-se numa lição de clareza ímpar: responde o Espírito Verdade a Allan Kardec que caridade – como a entendia Jesus – é benevolência para com todos, indulgência para com os erros alheios e perdão das ofensas.
Convencidos destas lições e sinceramente imbuídos do desejo de servir ao próximo, os espíritas brasileiros construíram, no curso do século XX, notáveis obras assistenciais nos diversos municípios do país, que prestam serviços de assistência social a gestantes carentes, enfermos, idosos, crianças abandonadas, pessoas com deficiência, pessoas em situação de rua, dentre outros.
São, em geral, atividades ligadas diretamente aos Centros Espíritas (ainda que detenham, em alguns casos, personalidade jurídica própria) e que funcionam à base do trabalho voluntário e se sustentam heroicamente por campanhas de arrecadação de recursos realizadas no âmbito da própria comunidade espírita; gozam de imunidade tributária e, em geral, são isentas de contribuição previdenciária patronal. Algumas poucas percebem subvenções públicas por conta de convênios ou termos de parceria.
O certo é que se caracterizam, de modo geral, pela excelência dos serviços prestados, já que seus voluntários são movidos pelo sincero desejo de servir ao próximo, isto é, de praticar a caridade em sua mais pura expressão. Por isso, em sua história já centenária, não lhes faltaram recursos financeiros, não obstante os percalços e turbulências da economia brasileira do pós-guerra; assim é que enfrentaram corajosamente as perseguições e intolerâncias religiosas, sobretudo nas pequenas cidades do interior, na primeira metade do século XX.
Tais dificuldades levaram as instituições a certo isolamento. A filosofia de atenção ao público assistido obedecia, quando muito, aos preceitos do serviço assistencial espírita (ajuda material imediata + esclarecimento doutrinário eventualmente acompanhado de assistência espiritual + sentimento baseado no amor ao próximo), sem qualquer orientação estatal ou qualquer envolvimento com os serviços assistenciais oferecidos pelo município.
E, de fato, pouco tinha o poder público a oferecer àqueles dedicados trabalhadores, já que a assistência social, no Brasil, era fortemente marcada pelo clientelismo e pelo improviso.
Entretanto, nos últimos anos tal situação vem se modificando lentamente. A assistência social no Brasil vem se profissionalizando, com base numa perspectiva de direito e não mais de favor.
Esta nova situação pode se refletir, de algum modo, nas atividades assistenciais espíritas? É disto que se cuida neste breve artigo.
II. O marco inicial da nova concepção de assistência social, no Brasil, é a Constituição Federal de 1988. Trata-se de texto constitucional de cunho marcadamente social e que traz, entre seus princípios fundamentais, o da dignidade da pessoa humana e o da solidariedade (artigo 1º, III, e artigo 3º, I).
Tais princípios, se entendidos e aplicados inteiramente em sua natureza de princípios fundamentais, sobre os quais devem se assentar todas as relações sociais, estatais ou não, podem revolucionar a sociedade brasileira, retirando o dinheiro e os interesses exclusivamente materiais de sua condição de referência maior e nela entronizando o homem e seus interesses morais e culturais. Seria o primado do genuíno humanismo que há de caracterizar o mundo regenerado, e não mais o humanismo burguês que se gestou desde o Renascimento, passando pelo Iluminismo, e que desaguou na atual ordem econômica e social, de cunho liberal, em que a supremacia é dos interesses materiais do homem; na verdade, de alguns poucos homens.
A partir de tais princípios, dispõe o artigo 204 da mesma Constituição Federal que “a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos (I) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (II) o amparo às crianças e adolescentes carentes; (III) a promoção da integração ao mercado de trabalho; (IV) a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e (V) a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.”
Esta nova concepção de assistência social consagra-se, no Direito brasileiro, a partir da edição da LOAS, a Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/93), que dá as diretrizes e balizamentos para a organização da assistência social no país.
Funda-se num tripé fundamental: conselhos de assistência social, planos de assistência social e fundos de assistência social, que devem existir nas três esferas de poder: federal, estaduais e municipais.
O funcionamento desta estrutura implica na busca de eficiência e de eficácia, isto é, de excelência na qualidade dos serviços assistenciais e de otimização dos recursos, sempre escassos. Desemboca, assim, na necessidade de um sistema único, organizado em forma de rede, de modo que os serviços, projetos, programas e benefícios sejam oferecidos a quem deles necessite de maneira eficiente e eficaz.
Nasce daí, a partir de uma resolução do Conselho Nacional de Assistência Social, o SUAS: Sistema Único de Assistência Social, que deve se estruturar em todo o país, de forma a se assegurar que a assistência social alcance a todos que dela necessitem, sem privilégios ou favores.
Aliás, aqui se situa a maior e talvez mais importante inovação desta nova perspectiva de assistência social: não mais favor, mas direito. Não mais o assistencialismo, como um favor que se presta ao pobre, mas a assistência devida a quem dela tem direito, porque dela necessita.
A perspectiva de direito muda o referencial da assistência social para o poder público: já não mais a primeira-dama, mas o profissional responsável pelo traçado e pela execução de políticas públicas destinadas a assegurar os direitos sociais previstos na Constituição Federal a todos os brasileiros, inclusive aos mais pobres e marginalizados; àqueles excluídos do mercado, porque pouco produzem e pouco consomem.
Para realizar tais objetivos, a nova assistência social deve basear-se em alguns pressupostos importantes: a gestão democrática e republicana (como forma de superação da antiga perspectiva de assistência como favor, sobretudo como instrumento de favorecimentos políticos eleitorais); a organização em rede, com base no território, para que um mesmo serviço ou programa não seja oferecido repetidamente por várias entidades além da demanda havida, enquanto outros, muito necessários, não são oferecidos por ninguém; a transparência na gestão dos recursos, por meio de fundos submetidos a controle social, como forma de se garantir a honestidade ou probidade e, portanto, a credibilidade da assistência social; a profissionalização e capacitação técnica das pessoas implicadas no trabalho, o que não significa excluir o sentimento de amor ou a responsabilidade moral do trabalhador, mas tão somente de se evitar a improvisação e a má qualidade do serviço prestado.
No que concerne aos objetivos a serem buscados, a nova visão da assistência social baseia-se em outros tantos pressupostos, igualmente importantes: a ênfase na família, para se garantir ao indivíduo a preservação ou a reconstrução de seus vínculos morais mais intensos; a busca da emancipação e do protagonismo, para que o assistido assuma a condução de sua vida e não mais necessite da assistência social.
III. A efetiva construção da rede SUAS, no Brasil, ainda é incipiente e enfrenta grandes dificuldades, já que implica em profunda mudança de paradigmas, tanto dos administradores públicos, como dos trabalhadores da assistência social, como, mesmo, dos próprios segmentos excluídos da população, o público-alvo da atividade.
Não obstante, passos importantes já foram dados no sentido de garantir as proteções previstas na legislação, tendentes a garantir os mínimos sociais a todo cidadão brasileiro.
Com efeito, a nova assistência social há de assegurar, a quem dela necessite, quatro seguranças básicas: acolhimento, isto é, a ouvida e apoio às primeiras e essenciais necessidades do homem; convívio, buscando-se a sociabilidade, aí incluída a já mencionada ênfase na preservação dos vínculos familiares; rendimentos, como forma de se garantir os mínimos; e autonomia, ou seja, a garantia de que o indivíduo torne-se protagonista de seu próprio destino e não mais necessite da assistência social.
Para garantir tais seguranças, a estrutura da nova assistência social brasileira prevê dois níveis de proteção: a proteção social básica e a proteção social especial. O conteúdo de cada uma está previsto em textos normativos casuísticos, em que se descrevem as características, requisitos e objetivos de cada qual. Do mesmo modo, outros tantos textos normativos (inclusive eventualmente em âmbito municipal) descrevem os vários serviços, projetos, programas e benefícios que o poder público deve oferecer à população. A esta descriminação dá-se o nome de tipificação dos serviços e programas assistenciais.
Pois bem. Neste ponto do raciocínio, impõe-se uma óbvia pergunta: quem executa tais serviços, programas e projetos? A resposta é: toda a sociedade, sob estrita orientação do poder público.
A filosofia adotada é de co-responsabilidade, de forma que as entidades assistenciais, inclusive religiosas, seguem relevantes no conjunto da assistência social, embora agora submetidas, se assim o desejarem, às diretrizes que o poder público deve traçar a partir de instâncias de participação social, ouvidas especialmente as próprias entidades.
Para a execução de tais objetivos, as prefeituras devem manter órgãos específicos de assistência social, os denominados CRAS e CREAS. CRAS é Centro de Referência em Assistência Social e é responsável pela proteção social básica, enquanto CREAS é Centro de Referência Especializado em Assistência Social e responsabiliza-se pela assistência social dirigida a um segmento específico, tais como população de rua, criança e adolescente etc.
Grande parte dos municípios brasileiros já conta com CRAS instalados e em funcionamento; no Estado de São Paulo, por exemplo, todos os 540 municípios já têm cada um o seu CRAS. Já os CREAS, por serem especializados, variam de município para município, de acordo com suas demandas específicas; na cidade de São Paulo, por exemplo, há o primeiro CREAS especializado em população de rua do Brasil, porque este é, na grande metrópole, um problema gravíssimo.
Como se vê, o Brasil tem, atualmente, um robusto conjunto de normas que organizam a assistência social. Conta, também, com um arcabouço teórico e diretrizes práticas que garantem uma estratégia de construção do SUAS, de modo a se assegurar inclusão social e efetivo respeito aos direitos sociais constitucionalmente previstos a todos os brasileiros.
As dificuldades para se atingir os objetivos maiores, no entanto, são enormes. Correm, em primeiro lugar, por conta da natureza humana falível, sobretudo num mundo ainda classificado como de provas e expiações, cuja tônica é a supremacia do mal sobre o bem. Tal situação é resultado das baixas condições morais de expressivo contingente de Espíritos que aqui convive, encarnados ou desencarnados.
Tais espíritos, ainda descomprometidos com os valores da Lei Natural, encontram campo propício para suas maldades nas injustas estruturas sociais ainda vigentes, notadamente numa ordem econômica egoísta, que transforma pessoas em consumidores e valores humanos em mercadorias.
Num mundo em que os valores foram transformados em interesses, é grande o desafio de se construir uma rede de serviços destinada a solidariamente auxiliar o semelhante, assegurando-lhe dignidade. Trata-se de atividade que não visa ao lucro e, em consequência, localiza-se à margem do mercado e, portanto, na contramão da perversa lógica de um mundo materialista e consumista.
É neste contexto que o Espiritismo pode contribuir para o avanço dos esforços; é neste contexto que os espíritas, responsáveis pelas atividades de assistência social, devem avaliar o quanto podem auxiliar e, ao mesmo tempo, serem auxiliados na prestação do serviço assistencial.
IV. Doutrina Espírita é filosofia humanista de libertação de almas, direcionada a que cada um assuma a condução de sua existência, numa perspectiva de imortalidade. Afinal, todos trazemos um longo passado de erros e acertos, de virtudes e defeitos; e a todos se abre um largo porvir marcado por importantes conquistas de valores espirituais, a depender do ritmo e da vontade de cada um. E este horizonte a todos nos toca, estejamos ou não na passageira condição de necessitados dos benefícios da assistência social.
Daí não esquecermos jamais que os assistidos de hoje são seres plenos de potencialidades exatamente como aqueles que prestam a assistência; e quiçá sejam até mesmo detentores de largas conquistas intelectuais, mas que se acham num momento existencial voltado à conquista da humildade e da simplicidade.
Ao mesmo tempo, é preciso lembrar que o processo de evolução moral, nos termos da Doutrina Espírita, é pessoal, mas só se realiza na vida de relação com o outro. Implica dizer que a solidariedade é lei natural (erigida, aliás, à condição de lema de atuação por Allan Kardec, ao lado do trabalho e da tolerância).
Ser solidário, no âmbito da assistência social, é contribuir para a evolução daquele que momentaneamente necessita de nosso auxílio; e temos o dever de fazê-lo, porque é da Lei Natural que cresçamos juntos, num mútuo esforço. E, como consequência, se temos o dever de auxiliá-lo, ele tem o direito de ser auxiliado. É o que já reconhece a lei humana brasileira, num eloqüente exemplo de que a legislação humana tende, mesmo, a se aproximar da lei divina, como pontifica o Espírito Verdade a Allan Kardec na pergunta 795 d’O Livro dos Espíritos.
Abre-se, portanto, o desafio de se direcionar as entidades assistenciais espíritas à somatória de esforços dos poderes públicos brasileiros, no sentido de garantir eficiência e eficácia na prestação dos serviços assistenciais. Que tal se faça, no entanto, mantendo-se o caráter religioso da entidade espírita, cabendo aos seus dirigentes e responsáveis bem separar a oferta de assistência espiritual (cuja adesão pelo assistido há de ser sempre voluntária) da oferta de serviços, projetos, programas e benefícios inerentes à assistência social e que não podem se confundir com aqueles, por conta da laicidade do Estado brasileiro.
Nos termos da recomendação de Allan Kardec, o lema há de ser: trabalho em favor de quem tem direito de ser assistido; tolerância para com os que não aceitam a assistência social imbuída da visão espiritual da vida; e solidariedade como cimento essencial das relações humanas numa sociedade de Espíritos imortais que buscam sua iluminação.
* Eduardo Ferreira Valerio é Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo, Promotor de Justiça de Direitos Humanos em São Paulo e Vice-Presidente de Eventos da AJE-SP, Associação Jurídico-Espírita do Estado de São Paulo.