2º Conjuresp – Artigos apresentados

CF/1988: A “PORTA DE ENTRADA” PARA A IMPLEMENTAÇÃO PRÁTICA DOS ENSINAMENTOS ESPÍRITAS NO ÂMBITO JURÍDICO

Por Adelle Rojo

Como estudantes da doutrina espírita, temos conhecimento que ainda estamos distantes do aprimoramento moral exigido para a total transformação espiritual e concretização dos preceitos Divinos.

A fim de visualizarmos isso, basta nos atentarmos para nosso próprio comportamento cotidiano. É bem verdade que dificilmente estamos em permanente comprometimento com os desígnios celestes e a consequente libertação dos sentimentos inferiores. Somente o exercício contínuo do “autopoliciamento” em relação aos nossos pensamentos, palavras e atitudes é que pode nos conferir um nível superior na escala evolutiva.
Consoante ao perfil de nossa conduta moral, percebemos que a situação se mostra ainda menos desenvolvida quando nos deparamos com os diplomas legais que regem a vida em sociedade. Naturalmente, eles são o reflexo do progresso até então atingido, de um modo geral, por todos nós.

Inadequado seria condenar o ordenamento jurídico de nosso país e, com mais razão, do restante do globo terrestre. Precisamos nos conscientizar de que ele constitui inevitável fruto de nossas conquistas morais. Não obstante a aparência retrógrada, a evolução é constatada, e a história da humanidade se encarrega de comprová-la.
No mesmo sentido, não podemos condenar a atividade legislativa e os indivíduos responsáveis por seu exercício. Isso porque eles constituem, ao lado de todos nós, espíritos cheios de imperfeições da escola evolutiva.

Existe grande probabilidade de terem planejado sua encarnação visando contribuir para as conquistas espirituais na vida terrestre. Todavia, o êxito de nossas tarefas sempre depende do modo como utilizamos o livre-arbítrio e, sendo assim, a inclinação para agirmos de acordo com as más tendências pode sobrepor-se à boa vontade. Caso isso ocorra, o resultado será o fracasso de nossos iniciais propósitos. É o que, infelizmente, muitas vezes constatamos.

Diante dessa realidade, devemos colocar em prática as lições estudadas na doutrina espírita e orar por nossos irmãos que se encontram em sintonia inferior, dando verdadeiro sentido à solidariedade.

É o que bem nos ensina André Luiz, no capítulo 42 de sua obra “Os Mensageiros”, a respeito de uma de suas experiências de trabalho espiritual realizada na crosta terrestre. Na ocasião, seu instrutor, Aniceto, evidencia a importância de não condenarmos nossos irmãos pelos erros que cometem, e praticarmos todas as condutas que estiverem ao nosso alcance para ajudá-los a compreender o que a escuridão de seu desenvolvimento ainda não permite que enxerguem. Devemos fazer isso incondicional e ilimitadamente (2011, p. 259-264).

De fato, a oração é um meio de exercer essa fraternidade, podendo ser realizada a qualquer momento e a todos direcionada. Entretanto, em termos práticos, apesar de seu infinito poder, não é ela que “apenas” nos resta. Podemos fazer mais.

Enquanto o crescimento dos valores morais ainda não se opera de forma unânime e constante e, por conseqüência, ainda não sentimos seus reflexos em nosso ordenamento jurídico (e em todas as demais esferas de atuação dos Poderes da República Federativa do Brasil), devemos nos apoiar no que já possuímos, isto é, no “avanço” até então conquistado. Este é um dos ensinamentos do Evangelho Segundo o Espiritismo em seu capítulo 25 (“Buscai e Achareis”), quando preceitua que para que a fé depositada na Providência gere bons frutos, precisamos utilizar dos meios que nos são fornecidos e, partindo deles, nos esforçarmos para atingir o fim almejado (p. 286-287).

Realmente, a tarefa de sabermos aproveitar o que temos em mãos, também é uma importante lição Divina. Aquele que passa por uma encarnação de dificuldades financeiras, por exemplo, deve enxergar (ter “olhos de ver”, como ensinou Jesus), e fazer valer as oportunidades que surgirem, conquistando, assim, os recursos necessários à sobrevivência: o alimento, a moradia, a educação, o bem estar, etc.
No meio jurídico, o instrumento de que dispomos é, tradicionalmente, a legislação em vigor.

Conforme mencionamos, suas falhas e carência de conteúdo elevado e inovador no que se refere aos valores humanos, costumam ser a regra. A título de exemplo, observemos a insensatez de leis penais que carregam sinais do denominado “direito do inimigo” e a presença da consciência de que a privação de liberdade é o meio eficaz de “salvar” o condenado e a sociedade [1].

Como também pudemos citar, apesar dessa dissonância entre a legislação vigente e os preceitos ensinados pelo Criador, já possuímos alguns indícios de evolução legal, uma vez que determinados assuntos passaram a ser tratados sob um enfoque humano, menos particular, e levando em consideração valores outrora não destacados.

Essas alterações podem se estabelecer pela influência do direito estrangeiro, e, do mesmo modo, pela alteração de posturas dentro de nosso próprio país. Nesse aspecto, cabe-nos mencionar as novidades trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), quanto à doutrina da proteção integral da pessoa em desenvolvimento; a previsão de medidas menos particularistas no Código Civil de 2002; e a possibilidade de incorporação de Tratados Internacionais de Direitos Humanos no ordenamento interno, como ocorreu com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (nos termos do parágrafo 3º, do artigo 5º, da CF/1988).

Nesse contexto, consideramos que o principal instrumento disponível, capaz de auxiliar-nos a colocar em prática as lições celestes na vida jurídica, de maneira efetiva e concreta, é a Constituição da República de 1988.
Assim afirmamos, tendo em vista o caráter com o qual nossa “Carta” maior se reveste. É a “Constituição garantia”, de acordo com Manoel Gonçalves Ferreira Filho. De fato, inúmeros avanços por meio de princípios e garantias são inaugurados após a Constituinte de 1988.

Basta olharmos para o rol dos direitos e garantias fundamentais previstos no Título II da CR. São mais de setenta incisos que visam respaldar direitos e garantias individuais e coletivos. Ademais, conferiu-se enorme valorização dos direitos sociais (artigo 6º e seguintes); da família como base da sociedade (artigo 226); do meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225); dentre outras previsões.
Esse é o instrumento de que dispomos para tentar implementar o avanço em nosso ordenamento jurídico (lei dos homens), conformando-o com as leis Divinas e, dessa forma, praticar os valores verdadeiramente superiores.

Tal objetivo, porém, não será alcançado se a atividade se desenvolver somente com base nos preceitos formalmente elencados no texto constitucional, pois os valores e lições divinas são, por óbvio, muito mais abrangentes. O conteúdo sistematizado em nosso documento escrito limita-se às nossas próprias barreiras enquanto espíritos. A Constituição da República, caracterizada por seu “espírito” garantidor, servirá, pois, como a “porta de entrada” para a renovação de valores no mundo (e meio) jurídico.
Aliado a este importante documento, impera o fundamental papel do aplicador do direito estudante da doutrina espírita, seja ele universitário, docente, advogado, defensor ou procurador público, membro do Ministério Público, do Poder Judiciário ou qualquer outro jurista, serventuário ou auxiliar de toda a estrutura que nos cerca, eis que são esses profissionais os responsáveis por interpretar a CF/1988 (e, por consequência, toda a legislação infraconstitucional), com base nos valores Cristãos.
Devemos abrir nossas mentes e aplicar esse instrumento da melhor maneira, conciliando-o com os valores que imperam nos planos superiores.

Acreditamos que é chegada a hora, já relatada em outra época pelos espíritos, na qual testemunharemos a junção da ciência com a religião. A seguinte passagem do Evangelho revela o que se afirma:

A ciência e a religião não puderam se entender até hoje, porque cada uma examinando as coisas sob seu ponto de vista exclusivo, se repeliam mutuamente. Seria preciso alguma coisa para preencher o vazio que as separava, um traço de união que as aproximasse; esse traço de união está no conhecimento das leis que regem o mundo espiritual e suas relações com o mundo corporal, leis tão imutáveis como as que regem o movimento dos astros e a existência dos seres. Essas relações uma vez constatadas pela experiência, uma luz nova se fez: a fé se dirigiu à razão, a razão não encontrou nada de ilógico na fé, e o materialismo foi vencido. Mas nisso, como em todas as coisas, há pessoas que permanecem para trás, até que sejam arrastadas pelo movimento geral que as esmagará se quiserem lhe resistir em lugar de a ele se abandonarem. É toda uma revolução moral que se opera nesse momento e trabalha os Espíritos; depois de elaborada durante mais de dezoito séculos, ela se aproxima do seu cumprimento, e vai marcar uma nova era na Humanidade. As conseqüências dessa revolução são fáceis de prever; deve trazer, nas relações sociais, inevitáveis modificações, às quais não está no poder de ninguém se opor, porque estão nos desígnios de Deus e resultam da lei do progresso, que é uma lei de Deus (p. 40)

Assim, cabe a nós, na medida em que nos é permitido, protagonizarmos esse processo de junção no âmbito das ciências jurídicas, pois o contrário já não satisfaz ao espírito em evolução.

Salientamos que não se trata, de forma alguma, de transpor a regra de Estado laico prevista na Carta Maior. Embora possa surgir muita resistência no desenvolvimento dessa postura, seja por parte de outros seguimentos religiosos ou do próprio governo, devemos deixar claro que a ideia não é essa. Não se trata de estabelecer a religião (ou filosofia) espírita, mas sim de interpretar as normas à luz dos valores morais e do bom senso, que, felizmente, nos são ensinados por essa doutrina.

Agir dessa maneira não é ser parcial ou impor um seguimento religioso. Trata-se de cumprir os preceitos esculpidos em nossa CF/1988, como a igualdade, fraternidade, dignidade da pessoa humana etc., acrescendo-lhes um enfoque mais prático. De certa forma, isso acaba por coincidir com parte da essência da doutrina estudada, concedendo-lhe efetiva aplicação também no campo jurídico.

Ou seja, não precisamos deixar claro a todos que nos circundam o que acreditamos e qual a nossa opinião a respeito de determinado assunto com base na doutrina espírita (a menos que nos indaguem, é claro) [2]. Basta que nossa atuação como profissionais e aplicadores do direito se ampare nos superiores valores estudados.
Para tanto, devemos parar de enxergar os casos concretos que nos são submetidos de modo imediatista, particular, embebidos de egoísmo e vaidade. É claro que a legislação vigente deve ser aplicada, mas a majoração dos valores que a circundam deve ser priorizada nessa aplicação.

Assim, a transformação ocorrerá de forma sutil, gradual e eficaz.

Todavia, para que isso realmente ocorra, é preciso que exista um profundo compromisso dentro de nós. De nada adiantará a interpretação jurídica de acordo com os preceitos Cristãos como “pano de fundo”, sem que nos policiemos continuamente nesse mesmo sentido, seja em nossa vida particular, profissional ou social.

Urge a importância desse aprimoramento e constante vigília de nossos pensamentos, palavras e atitudes.

De alguma forma, já podemos sentir esse desenvolvimento no que diz respeito à atuação judicial, pois muitas decisões passam a ser proferidas com base num espírito garantista e humano.

Todavia, ainda é muito pouco. Nosso trabalho interpretativo e argumentativo deve pautar-se cada vez mais nesses preceitos, de forma a alertar aqueles ao nosso redor de que a existência não se resume a essa encarnação, e que a felicidade plena, a ser um dia alcançada, depende da forma como encaramos as pequenas situações do presente.

O Judiciário é o meio de que dispõe a população para fazer valer suas pretensões. Ao lado dessa assertiva, indaga-se: Quantos conflitos nos cercam? Quanto sentimentos inferiores nos circundam? Porém, quantas dessas discórdias poderiam ser evitadas, caso o conhecimento e aplicação das leis Divinas plenamente se efetivasse? Há de chegar o momento em que isso ocorrerá. A Terra ainda será um mundo de regeneração e, num futuro ainda mais distante, um planeta envolto pela felicidade.
Eis o que o Espírito Fénelon nos enfatizou no Evangelho:

A revolução que se prepara é antes moral que material; os grandes Espíritos, mensageiros divinos, insuflam a fé, para que todos vós, obreiros esclarecidos e ardentes, façais ouvir vossa humilde voz; porque vós sois o grão de areia, mas sem grãos de areia não haveria montanhas. Assim, pois, que estas palavras: “Nós somos pequenos”, não tenha mais sentido para vós. A cada um a sua missão, a cada um seu trabalho. […] A nova cruzada começou; apóstolos da paz universal e não de uma guerra, São Bernardos modernos. Olhai e caminhai em frente: a lei dos mundos é a lei do progresso (p. 42)

Por tudo isso, percebemos que aludida transformação depende de todos. Cada qual desempenhando seu papel diante das oportunidades da existência. Nós, estudantes da doutrina e aplicadores do direito, não devemos agir de modo diverso: possuímos a honrosa missão de implementar e cultivar esses dignos valores dentro de nosso meio.

NOTAS

[1] Conforme nos ensina Pierangeli e Zafaroni (2011, p. 675), a pena privativa de liberdade infelizmente ainda constitui “o núcleo central de todos os sistemas punitivos do mundo contemporâneo”;

[2] Com relação a isso, cada um terá o seu devido momento de “despertar”.

REFERÊNCIAS

BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: Acesso: 29 abr 2012;

_____. Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: Acesso: 25 mai 2012;

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 26 ed. São Paulo: Saraiva, 1999;

Kardec, Allan. O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO. Tradução: Salvador Gentile. Catanduva, SP: Boa Nova Editora, 2004;

LUIZ, André (espírito). OS MENSAGEIROS [psicografado por Francisco Cândido Xavier; ditado pelo espírito de André Luiz. 45 ed. – 3ª reimpressão atualizada. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2011;

ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1. Parte geral. 9. Ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.